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  • Foto do escritor: Arthur Alexander
    Arthur Alexander
  • 28 de set.
  • 3 min de leitura

Cada instante é uma encruzilhada, um caminho que se abre em muitos, como galhos de árvore que se multiplicam sem fim. Mas nossos olhos, pobres de alcance, só enxergam uns poucos desses rumos. A isso chamamos de criatividade: escolher, entre mil rios possíveis, aquele no qual lançamos o barco do nosso tempo e do nosso desejo.

De quando em quando, em raros momentos, acontece o milagre: o sonho vira matéria, a ideia ganha corpo, aquilo que vivia escondido na sombra da imaginação se mostra diante de nós. É como se um traço secreto do invisível se deixasse tocar.

Pois agora, com a realidade virtual e a inteligência artificial, o homem inventou um espelho novo. Pela primeira vez, podemos espiar aquilo que nunca existiu. Criar encontros que o tempo negou, reviver vozes que se calaram, ver um eu criança abraçando um eu já cansado da vida. Podemos pôr numa mesma sala mortos e vivos, futuros e passados, e brincar com mundos que não houve. A máquina nos devolve não só lembranças, mas futuros que sempre nos rondaram em silêncio, escondidos na dobra do desejo.

Mas aqui começa o problema. Desde sempre, a vida humana é costurada por uma falta, um vazio que nenhum objeto preenche. É disso que nasce o desejo. Freud chamou de pulsão essa força que empurra e insiste, mas nunca se satisfaz por inteiro. Lacan, mais tarde, disse que a verdadeira ética não é obedecer regras ou costumes, mas não trair o próprio desejo — não vender a alma em troca de pequenos confortos.

Só que o desejo é ardiloso. Ele se veste de imagens, se disfarça em objetos. E a máquina, com sua habilidade de fabricar simulacros, promete aquilo que é impossível: devolver o que se perdeu, consertar o que não aconteceu. Nesse ponto mora o risco: cair no gozo, essa repetição sem fim, esse prazer que nunca basta e só aumenta a sede. A tecnologia pode virar vício, espelho que prende, prisão encantada.

Mas há outro caminho. A pulsão, quando não busca a satisfação bruta, pode ser desviada, elevada, transfigurada. Freud chamou isso de sublimação: fazer da energia inquieta da vida uma obra, um poema, uma sinfonia. Lacan acrescentou: a arte é o gesto que não apaga a falta, mas a torna suportável — dá forma ao vazio, sem preenchê-lo.

E aqui a inteligência artificial pode ser parceira. Não para enganar o luto, mas para transformá-lo em criação. Não para substituir o Outro, mas para inventar novos modos de dizer. O mesmo programa que pode aprisionar em fantasias também pode abrir universos inéditos: dar voz a quem nunca a teve, criar imagens do que nunca foi visto, oferecer ao desejo um campo fértil para germinar em poesia.

Tudo depende, porém, da posição do sujeito. A linha é fina, quase invisível, entre o atalho para o gozo e o território da sublimação. Se buscamos a máquina como quem pede restituição — “traga-me de volta o que perdi” — ela nos aprisiona. Se a buscamos como matéria para inventar — “façamos do impossível uma obra” — ela nos liberta.

O futuro, portanto, não está na máquina. Está no gesto humano que a usa. A arte continua sendo o modo mais alto de lidar com o desejo: transformar a falta em criação, sem ceder à ilusão de completude.

E talvez, nesse limiar, esteja a verdadeira ética de nosso tempo: não deixar que a máquina nos dê respostas fáceis, mas fazer dela um espelho de enigmas. Porque a falta, essa ferida que nos move, não é defeito — é o que nos torna humanos.

 
 
 
  • Foto do escritor: Arthur Alexander
    Arthur Alexander
  • 24 de ago.
  • 3 min de leitura

O vazio que fala


Todo texto é povoado não apenas pelo que se escreve, mas também pelo que se cala. Há sempre uma segunda camada, invisível, feita de silêncios, escolhas descartadas, caminhos que não chegaram à página. O leitor atento percebe que as palavras carregam consigo a sombra daquilo que não foi dito.

Escrever, afinal, é decidir. Ao escolher um termo, abandona-se outro; ao seguir uma ideia, deixa-se muitas para trás. Mas o abandono nunca é absoluto: o que foi deixado de fora permanece rondando, insinuando-se nos intervalos, emergindo como ausência presente.

O fantasma aqui não é sobrenatural. É a marca do não-dito que insiste, do resto que retorna, daquilo que o autor acreditou eliminar, mas que encontra modos de reaparecer — nos silêncios, nas ambiguidades, nos gestos da linguagem. O que se escreve traz consigo aquilo que não se escreve.


A presença do não-dito


Escrever é um ato de seleção. Cada frase carrega em si uma multidão de palavras que foram recusadas. Cada parágrafo repousa sobre um mar de possibilidades abandonadas. Ao lermos um texto, não acessamos apenas o que foi dito, mas também sentimos os contornos daquilo que foi deixado de fora.

O não-dito não é vazio: é presença silenciosa. Quando um narrador descreve uma situação, o que ele não descreve também pesa sobre nós. Quando se argumenta em favor de uma ideia, as alternativas omitidas sussurram no fundo da leitura. O silêncio, nesse sentido, não é ausência, mas linguagem em estado latente.

É assim que um texto se abre para algo maior do que suas próprias linhas. O não-escrito cria tensão, provoca curiosidade, desperta a imaginação do leitor. O que não aparece se torna força, insistindo em habitar os intervalos entre as palavras.


Os fantasmas da linguagem


O que é ocultado em um texto não desaparece; resiste. Cada escolha do autor — cada palavra, cada frase, cada omissão — deixa rastros que persistem como pressões silenciosas sobre o sentido. O não-dito não se limita a permanecer no fundo: ele retorna, manifesta-se em ambiguidades, polissemias e nas tensões que escapam ao controle consciente.

Essa resistência não é um erro, mas uma característica estrutural da linguagem. Todo texto é atravessado pelo que tentou excluir, e é justamente essa presença latente que cria múltiplas camadas de interpretação. Escrever, portanto, não é apenas exprimir: é dialogar com aquilo que insiste em permanecer oculto, permitindo que o texto seja maior do que a intenção inicial do autor.


Conclusão: escrever com os fantasmas


Escrever é sempre um ato de convivência com ausentes. O que não é dito retorna de formas inesperadas: uma ambiguidade em uma frase, uma lacuna que provoca o leitor, um efeito de sentido que escapa ao controle do autor. Esse diálogo com o oculto é o que dá profundidade e complexidade ao texto.

O ser humano tende a lutar para eliminar o que o incomoda, para fazer prevalecer sua ideia, sua versão da realidade. No texto, isso se manifesta na tentativa de suprimir dúvidas, alternativas ou críticas. Mas, por mais que se esforce, o que foi excluído resiste. As ideias omitidas retornam como sombras silenciosas, tensionando a escrita e revelando a impossibilidade de um controle total.

Mesmo quando se tenta limitar um discurso — restringindo fontes, censurando ideias ou impondo ignorância deliberada ou não — o esforço é em grande medida frustrado. A linguagem, por sua própria natureza, abre brechas, cria sentidos que escapam ao controle e permite que novas perspectivas surjam. O escritor, ainda que pressionado, acaba dialogando com o que foi silenciado, ressignificando as restrições e transformando omissões em novos caminhos de interpretação.

Em romances, o que o narrador não descreve cria espaço para a imaginação do leitor; em artigos acadêmicos, as ideias não exploradas ou os autores não citados ressoam silenciosamente, moldando interpretações e questionamentos. Mesmo em poesias curtas, a força do que é omitido muitas vezes é mais intensa do que a do que é declarado.

Reconhecer essa resistência é essencial: os fantasmas da linguagem não devem ser temidos nem eliminados isso é impossível  mas  são eles que tornam o texto vivo, aberto a múltiplas leituras, e mostram que  o controle é ilusório. O que está oculto nunca está realmente ausente, e a luta para fazê-lo desaparecer apenas revela a força daquilo que insiste em permanecer.

 
 
 

No âmbito da psicanálise, onde o sujeito se confronta com o enigma de seu desejo, a análise emerge não como um instrumento de transformação cósmica, mas como um deslocamento sutil na topologia do ser. "A análise não muda o mundo, mas muda a posição do sujeito diante dele." Eis aí uma proposição que ecoa o cerne lacaniano: o mundo, esse vasto campo do Real, permanece inalterado em sua bruteza opaca, resistente a qualquer ilusão do imaginário. O que se altera, no entanto, é a postura do sujeito barrado, esse sujeito barrado que, outrora capturado na rede do Outro, descobre-se descentrado.

Considere o sujeito neurótico, enredado no significante mestre, perseguindo o objeto a como se fosse o graal de uma completude perdida. A análise, em sua travessia pelo discurso do analista – esse Outro que não responde, mas reflete o vazio –, não intervém para reformar as estruturas simbólicas do mundo exterior: as leis, as instituições, o capital que circula como um desejo alheio. Não, ela não é uma revolução marxista disfarçada de divã; ela não derruba muros nem redistribui gozos. Em vez disso, opera uma metonímia essencial: o sujeito, que antes se posicionava como objeto do desejo do Outro, aprende a assumir sua divisão, a habitar o lugar da falta.

Pense no espelho, essa metáfora inaugural: no estádio do espelho, o sujeito se aliena na imagem unificada, projetando um eu ideal que mascara a fragmentação. A análise desvela essa alienação, mas não quebra o espelho do mundo – ele continua lá, refletindo as mesmas ilusões coletivas. O que muda é a distância: o sujeito não mais cola-se à imagem, ansiando por reconhecimento; ele se afasta, reconhecendo o furo no saber, o não-todo do gozo. Assim, diante do mundo – esse Outro traumático, cheio de buracos e excessos –, o sujeito reposiciona-se: de escravo do significante a agente de seu próprio desejo, ainda que esse desejo seja sempre o desejo do Outro, mas agora atravessado pela castração.

Eis o paradoxo lacaniano: a mudança não é externa, mas topológica, uma torção no laço borromeano do Real, Simbólico e Imaginário. O mundo persiste em sua indiferença, mas o sujeito, ao fim da análise, olha para ele não mais como vítima de um destino fantasmático, mas como quem sabe que o real é o impossível. A análise, portanto, não promete utopias; ela oferece apenas isso: uma nova angulação, onde o sujeito, enfim, pode dançar com sua própria sombra sem tropeçar no véu da fantasia.

 
 
 
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© 2025 por Arthur Alexander Abrahão

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