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Disseram-me que a Ferrari é o ápice do desejo automobilístico. Discordo: ela é apenas o fantasma necessário para que você compre uma moto."


I. A Ferrari como significante mestre

No universo simbólico, toda organização de desejo demanda um ponto de fixação: o Significante Mestre. Para Lacan, este significante não diz nada, mas estrutura tudo. A Ferrari, neste caso, não é um carro — é um fetiche absoluto. Ela ocupa o lugar de um objeto que ninguém possui, nem mesmo quem a dirige. Afinal, o verdadeiro dono de uma Ferrari nunca a possui de fato: ele apenas se tornou servo de seu brilho.

A Ferrari não é comprada. Ela compra o sujeito. Ela o captura em seu gozo escópico, em seu brilho fálico.


II. O Objeto a e o gozo inacessível

Na linguagem lacaniana, o objeto a é aquilo que causa o desejo — mas que jamais se possui. É o que falta. A Ferrari, em sua função estrutural, não é para ser dirigida, mas para ser sonhada. Sua existência se justifica na medida em que sustenta o desejo.

Mas qual desejo?

Não o desejo da Ferrari, mas o desejo que nasce ao redor dela: o desejo da moto, do tênis de corrida, do celular com “desempenho Ferrari”. O mundo é povoado por “substitutos simbólicos” que orbitam esse sol de desejo.

A Ferrari não é um fim. Ela é o começo da cadeia metonímica do desejo: é porque existe a Ferrari que você compra uma moto. A Ferrari é o buraco negro onde o desejo implode e, em seguida, escorre para os produtos do cotidiano.


III. O fetiche e a alienação do gozo

A moto que você compra não é só um veículo. Ela é um suplemento fantasmático. Como diria Baudrillard, não compramos objetos — compramos simulacros de gozo.

A Ferrari, nesse sentido, aliena o sujeito duplamente: primeiro, porque ele acredita que deseja a Ferrari; segundo, porque ele desloca esse desejo para algo que está ao seu alcance. A moto se torna um paliativo, um sintoma. Ela goza no lugar do sujeito — mas de maneira menor, mais triste, mais aceitável socialmente.

E o sujeito, nesse processo, permanece sem saber o que deseja. Porque o desejo não tem objeto, só causa. E o objeto-causa de desejo — a Ferrari — é inalcançável por definição.


IV. Como sintoma

A frase “A Ferrari existe pra vender motos” é, portanto, uma sentença lacaniana. É um wittgensteiniano aforismo de gozo, onde o sistema mercadológico revela seu inconsciente: não queremos o que queremos; queremos o que o outro quer — e só porque sabemos que nunca poderemos tê-lo.

A Ferrari existe para alimentar o mercado de substitutos. Ela é um nome-do-pai do consumo, organizando o simbólico do capital. Não é preciso que você a compre. Basta que você não a tenha.

 
 
 

Vivemos tempos em que tudo é avaliado em termos de resiliência: resistir à dor, suportar o trauma, aguentar o tranco. Mas o que aconteceria se disséssemos que o desejo humano não apenas resiste às crises — ele se alimenta delas?

Inspirado pela noção de “antifrágil” de Nassim Taleb — aquilo que melhora quando exposto ao caos — e pela leitura de Lacan sobre o desejo e o recalque, este ensaio propõe uma chave de leitura para o funcionamento do inconsciente: o desejo é antifrágil; o recalque, uma forma de entropia subjetiva.


O desejo que cresce no vazio

Lacan dizia que “o desejo é o desejo do Outro”. Isso significa que o desejo nasce da falta, daquilo que nos escapa, daquilo que não temos. É exatamente essa ausência que move o sujeito. O desejo nunca se satisfaz porque, por estrutura, está sempre um passo além do objeto que parece prometê-lo. E é justamente aí que ele se fortalece.

Pense em uma paixão amorosa: você deseja alguém. Quanto mais inacessível essa pessoa parece, mais o desejo cresce. Não porque ela valha mais, mas porque o desejo se alimenta da falta. O desejo é como uma fogueira alimentada por vento — a instabilidade não o apaga, a instabilidade o aviva.

Tal como o antifrágil de Taleb, o desejo se beneficia do inesperado. Uma perda, uma crise, uma frustração podem, paradoxalmente, intensificar o desejo, tornar a vida mais vívida, mais simbólica, mais cheia de sentido. Isso não é masoquismo: é a estrutura do sujeito desejante, que se move por hiatos, não por plenitudes.


O recalque como bloqueio entrópico

Em contrapartida, temos o recalque: mecanismo fundamental do inconsciente, responsável por empurrar para fora da consciência aquilo que nos ameaça — desejos, fantasias, lembranças incompatíveis com o que podemos sustentar como identidade.

Mas o recalque tem um custo. Ele age como um sistema que, para manter a ordem interna, precisa congelar a energia do desejo. Como na física, em que a entropia é a tendência à desorganização e ao esgotamento da energia útil, no psiquismo o recalque é uma forma de resistência entrópica: congela o movimento criativo do desejo em sintomas — que, por sua vez, retornam como sofrimento, repetição e inibição.

Tomemos um exemplo clínico comum: alguém que reprime o desejo de mudar de carreira por medo do fracasso. O recalque não elimina o desejo — ele o desloca. Essa pessoa começa a sofrer crises de ansiedade, insônia ou dores físicas. O desejo continua ali, mas emparedado, congelado, transformado em sintoma.


O desejo resiste ao recalque

Por mais que o recalque tente barrar o desejo, este retorna — deslocado, disfarçado, mascarado. Isso ilustra o que Freud chamou de "retorno do recalcado" — retomado por Lacan em sua teoria. O desejo tem uma lógica própria, que insiste e escapa ao controle. Essa insistência do desejo é o que o torna antifrágil: ele se adapta, se reconstrói, se infiltra nos interstícios do discurso do sujeito.

Exemplo: um desejo reprimido na infância pode retornar, décadas depois, como obsessão artística, escolha de profissão ou sonho recorrente.


A escolha do sujeito: entropia ou reinvenção

O ponto crucial é que, diante de uma crise — pessoal, profissional, amorosa — o sujeito está sempre diante de duas vias: recalcar (e produzir entropia) ou elaborar (e fortalecer o desejo).

Um sujeito que atravessa um luto, por exemplo, pode reprimir seu sofrimento, fingir força e, assim, converter o desejo de elaborar a perda em sintomas silenciosos. Ou pode mergulhar na dor, dar palavras à ausência e reinventar o vínculo na linguagem. Nesse segundo caminho, o luto torna-se motor de transformação: o desejo se reinventa, a subjetividade se expande.


A psicanálise como dispositivo antifrágil

Neste dispositivo, o sujeito ocupa um nó borromeano — Real, Simbólico e Imaginário entrelaçados — de modo que a travessia desses registros atua como alavanca antifrágil, pois a reorganização do laço social interno fortalece o desejo.

Detalhadamente, o nó borromeano ilustra como cada registro mantém o outro em tensão: o Real introduz o impacto do imprevisível, o Simbólico estrutura a linguagem e as leis que moldam o sujeito, e o Imaginário abriga as imagens e identificações. Na análise, o recalque se dissolve ao inscrever o Real no Simbólico, permitindo que o Imaginário se recomponha livre de fixações. Esse movimento triplo não apenas supera a entropia psíquica, mas produz novas suturas de sentido, ampliando a potência desejante ao invés de congelá-la.

A clínica psicanalítica não visa curar no sentido médico do termo. Ela propõe outra coisa: abrir espaço para que o sujeito deseje. Mais do que restaurar uma estabilidade anterior, trata-se de produzir um novo ponto de partida — uma nova relação com a falta.

Em vez de apagar o trauma, a análise permite que o sujeito o reinscreva simbolicamente, transformando-o em fonte de potência. Em outras palavras: a análise não suprime o caos — ela o atravessa, para que o desejo possa emergir fortalecido.


Conclusão

O desejo é antifrágil: cresce com a crise, fortalece-se no encontro com a falta e se reinventa a partir do trauma. O recalque é entrópico: congela o movimento do desejo, tentando manter a coesão psíquica à custa da repetição e do sofrimento. A análise é o espaço onde essa entropia pode ser revertida, e o sujeito reencontra a potência de desejar, mesmo sem garantias, mesmo tropeçando no real.

 
 
 
  • Foto do escritor: Arthur Alexander
    Arthur Alexander
  • 30 de abr.
  • 2 min de leitura

Atualizado: 9 de mai.

Em  “homem dos miolos frescos”, relatado por Ernst Kris em 1951, o paciente se queixava de ter plagiado ideias de outro autor. Kris respondeu com argumentos racionais, provando que não havia plágio. Ainda assim, o paciente “comeu miolos frescos” após a sessão – um acting out que Lacan interpreta como resposta à interpretação excessivamente factual do analista. Para Lacan, o cerne não era o “crime” de roubar ideias, mas a crença do paciente em sua incapacidade de ter ideias próprias – o famoso “rouba nada”. Essa expressão indica que o sujeito se apropria de um vazio (“nada”), não de algo concreto, e que é aí que reside sua angústia.


1. O caso clínico de Ernst Kris

1.1 Descrição original

  • Em 1951, Ernst Kris publica no Psychoanalytic Quarterly o caso de um paciente obcecado pela ideia de ter plagiado outro autor.

  • Kris demonstra, por via lógica, que não houve plágio.

  • Na sessão seguinte, o paciente relata que, após sair, comeu “miolos frescos” num restaurante. 1.2 Interpretação de Kris

  • Kris lê o ato como um sintoma ligado à angústia de plágio.

  • Para ele, o comer miolos seria uma expressão direta do conflito entre o desejo de originalidade e o medo de cópia.


2. A crítica de Lacan: “rouba nada”

2.1 Onde aparece

  • Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Écrits, 1966), Lacan retoma o caso e diz:“Quitemos o ‘não’: é que rouba nada. E isso é o que haveria que ter‑lhe feito entender.”

2.2 Significado de “rouba nada”

  • Não se trata de defender o paciente contra a acusação de roubo (“não rouba”).

  • Trata‑se de evidenciar que ele se apropria de um vazio, de uma falta de significação, e não de algo concreto.

  • O sintoma (comer miolos) indica que a interpretação factual de Kris não tocou na dimensão simbólica do desejo do sujeito.


3. O acting out como resposta analítica

3.1 Definição lacaniana de acting out

  • Lacan vê o acting out como ato que surge quando o desejo do analisante é silenciado por uma interpretação que não o alcança simbolicamente.

  • Ele enfatiza a dimensão intersubjetiva: o paciente “come miolos” para comunicar algo não assimilado pela razão do analista

  • 3.2 Como Kris provocou o acting out

  • Ao focar na “verdade factual” (plágio vs. não‑plágio), Kris negou o “nada” que estruturava o desejo do paciente.

  • Essa negação funcionou como um apagamento do desejo, levando o paciente a um ato extremo para reinstalar sua questão subjetiva.


4. Implicações clínicas para a psicanálise

4.1 Escuta do vazio

  • O analista deve atentar não só ao conteúdo manifesto, mas ao vazio que o sintoma aponta.

  • Em vez de refutar a fantasia (“você não roubou”), é preciso explorar o que falta para o sujeito sentir‑se criador de suas próprias ideias.

  • 4.2 Manejo do acting out

  • Reconhecer o acting out como mensagem e não mero rompimento de contrato analítico.

  • Oferecer espaço para que o paciente simbolize seu “nada” – por exemplo, por meio de associações livres – antes de dar interpretações conclusivas.

  • 4.3 Transferência e posição do analista

  • Evitar a postura de “detentor da verdade” que silencia o sujeito.

  • Manter a curiosidade sobre o que o sintoma comunica, sem apressar-se a “corrigir” o paciente.

 
 
 
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© 2025 por Arthur Alexander Abrahão

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