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Entre o Gozo e a Sublimação: A Ética do Desejo na Era da Inteligência Artificial e da Realidade Virtual

Este ensaio investiga como a inteligência artificial e a realidade virtual redefinem a relação do sujeito com o desejo, oscilando entre a promessa de um gozo ilusório e a possibilidade de uma sublimação criativa. A partir da ética psicanalítica de Freud e Lacan, explora-se o papel da tecnologia na articulação da falta, questionando se ela nos aprisiona em simulacros ou nos convida a transformar a pulsão em obra.

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Cada instante é uma bifurcação, um leque infinito de possibilidades. A mente humana, porém, só consegue vislumbrar um punhado delas. Chamamos isso de criatividade. É nesse punhado que escolhemos onde investir nosso esforço, nosso tempo, nosso desejo — e, às vezes, conseguimos transformar um lampejo de imaginação em algo real. Mas ao longo de uma vida, são raros os momentos em que aquilo que sonhamos se torna palpável, visível, tangível. Quando isso acontece, nossos olhos finalmente alcançam o que antes só existia no olhar secreto da imaginação. Com a realidade virtual e a inteligência artificial, algo inédito surgiu: pela primeira vez na história, nossos olhos podem contemplar caminhos que um dia criamos apenas na mente — caminhos que jamais poderiam ser vistos. Hoje começamos a brincar de explorar o que “poderia ter sido”: pequenos filmes onde reencontramos pessoas que seguiram outros rumos, revivemos situações impossíveis, ou vemos, por exemplo, meu eu criança abraçando meu eu adulto. Podemos reunir, em universos virtuais, pessoas de épocas distintas, recriar vozes extintas, dar corpo e timbre ao que parecia perdido. A inteligência artificial não apenas nos mostra o impossível: ela nos devolve o vislumbre de futuros que nunca existiram, mas que sempre habitamos em silêncio.

 

A ética e a ética da psicanálise

Quando falamos em ética em sentido geral, referimo-nos não apenas a sistemas de normas que orientam atos, escolhas e juízos de valor — sejam eles utilitaristas, deontológicos ou baseados em virtudes morais —, mas também à reflexão sobre os fundamentos dessas normas. A ética tradicional pergunta: o que devo fazer? Quais ações são permitidas, obrigatórias ou proibidas?

A ética da psicanálise, porém, desloca a pergunta. Não se trata primariamente de um manual de regras de comportamento social, mas de uma reflexão sobre as relações singulares dos sujeitos com seu desejo. Em Freud, a clínica não prescreve uma moral abstrata: ela visa tornar consciente o inconsciente para diminuir o sofrimento e permitir que o sujeito se responsabilize por seus atos — isto é, aumentar sua autonomia frente às repetições inconscientes. Em Lacan, essa perspectiva ganha feições mais explícitas: a ética da psicanálise não é conformismo moral, mas fidelidade ao próprio desejo. Lacan propõe que a posição ética do sujeito consiste em não trair o que o atravessa — em não ceder ao que o Outro prescreve como desejo ‘fechado’. A máxima lacaniana frequentemente citada (em sua obra sobre ética) aponta para a singularidade do desejo: a ética analítica não consiste em realizar todos os desejos, tampouco em submeter-se ao imperativo social, mas em orientar-se pela verdade do próprio desejo singular.

Dessa forma, a ética psicanalítica interroga: até que ponto as práticas e tecnologias que usamos respeitam ou deformam a relação do sujeito com seu desejo? Quando um dispositivo tecnológico promete completude — a restauração de um ausente, a reencenação de um momento irrepetível — ele age no campo ético, porque altera a forma como o sujeito se relaciona com a falta que o constitui.

Pulsão, sublimação e arte

Pulsão (Trieb) — para Freud — não é simplesmente uma necessidade biológica: é um circuito de pressão libidinal que tem fonte (uma excitação corporal), um fim (a descarga), um objeto e uma força. A pulsão insiste; ela não é satisfeita de maneira definitiva; desloca-se, metamorfoseia-se. A cultura e a civilização, segundo Freud, exigem renúncias e operações de deslocamento dessa energia pulsional: parte dessa energia é redirecionada para fins socialmente valorizados — isso chama-se sublimação. Sublimação, na definição freudiana, é o desvio produtivo das pulsões para obras, práticas e instituições que enobrecem (arte, ciência, religião, técnica). Não se trata de anular a pulsão, mas de transformar sua energia em forma simbólica e socialmente significativa.

Lacan reinterpreta e complica a noção: ele desloca o foco para a relação entre o desejo e o objeto causa do desejo — o chamado objeto petit a — e fala da sublimação como um rehaussement do objeto, isto é, como elevar um objeto ou um traço ao estatuto de “Coisa” simbólica. Para Lacan, a arte pode operar uma sublimação própria porque produz uma forma que circula no Simbólico (linguagem, simbologia) e que permite que a falta funda significado — a obra não promete completar o sujeito; ela dá um lugar, uma escrita, uma experiência pela qual a pulsão encontra expressão e transformação.

A arte, então, é o território emblemático da sublimação: ao invés de prometer restituição sensorial direta do objeto perdido (o gozo do reencontro), ela trabalha a ausência, transforma fragmentos, produz metáforas e linguagens novas. A obra de arte não supre o que falta, mas cria sentido em torno dessa falta e comunica algo que sustenta o desejo sem o reduzir a objeto consumível.

A IA e a realidade virtual: atalhos para o gozo ou matéria para sublimação?

A tecnologia contemporânea (IA, VR, deepfakes, síntese de vozes) introduz duas possibilidades que, à primeira vista, se opõem mas se tocam numa linha tênue.

Atalho para o gozo: a tecnologia pode funcionar como aparelho que encurta a via do desejo, oferecendo reproduções sensoriais muito próximas do objeto perdido — o clone vocal do falecido, o reencontro virtual com um amor que escolheu outro caminho, o “eu” infantil que abraça o adulto. Esses simulacros prometem satisfação imediata e repetível. Na linguagem lacaniana, proporcionam uma espécie de jouissance replicável: não tanto a satisfação que resolve a falta, mas o gozo excessivo que pode tornar-se compulsivo. Porque o que o sujeito encontra é um objeto que imita o real do Outro, sem as mediações simbólicas que tornam o desejo ético (a castração, o limite, a lei). O risco clínico é claro: ilusão de completude, regressão à fantasia, paralisação do trabalho do luto, captura em circuitos repetitivos de consumo imagético.

Território para a sublimação: as mesmas tecnologias — quando tomadas como matéria e não como fim — oferecem novos materiais estéticos e simbólicos. Um artista que recorre a vozes recombinadas para compor uma peça sobre perda não visa “trazer de volta” o ente amado, mas torna a técnica um meio para elaborar e tornar compartilhável a experiência da falta. A IA pode ampliar o léxico formal, criar novas metamorfoses narrativas, instituir gestos simbólicos inéditos que reorientam a pulsão para criação. Aqui a tecnologia é instrumento de linguagem: transforma pulsionalidade em obra, em imagem que não apaga a falta mas a articula.

A diferença decisiva não é técnica, mas posicional: qual é a relação do sujeito com o que a tecnologia permite? Busca-se a satisfação consumível ou uma apropriação transformadora?

Posição do sujeito: a linha tênue e a decisão ética

A linha entre atalhos de gozo e caminhos de sublimação é tênue porque ambas as operações utilizam materiais sensíveis semelhantes — imagens, vozes, reencenações. O que as distingue é a posição ética do sujeito: sua capacidade de manter a falta como motor (e não como defeito a ser eliminado), de reconhecer que qualquer simulacro fala sobre um hiato irredutível.

Seguindo a lição lacaniana: a ética exige que o sujeito não ceda ao que promete apagar sua falta. Não se trata de proibir o uso da tecnologia, mas de situá-la num campo que preserve a singularidade do desejo. Assim, algumas condições éticas e estéticas tornam-se plausíveis:

  • Reconhecer que o reencontro virtual é uma forma simbólica e não uma restituição do real;

  • Tratar a tecnologia como matéria para trabalho poético ou clínico, não como catálogo de satisfação;

  • Articular práticas coletivas (arte, rituais, linguagens críticas) que não naturalizem a substituição do Outro humano por simulacros algorítmicos.

Numa formulação curta: a tecnologia pode tanto intensificar a servidão dos sujeitos ao gozo quanto ampliar as possibilidades de sublimação. A diferença não se encontra nas linhas de código, mas no campo do sujeito que faz da tecnologia obra — prática que transforma a pulsão, dando-lhe forma simbólica e civilizada — em vez de mero consumo.

Conclusão

A realidade virtual e a inteligência artificial não aboliram a falta; apenas tornaram visíveis e disponíveis, de maneira inédita, os objetos que orbitam em torno dela. À vista dessa disponibilidade, cabe ao sujeito — e às práticas culturais que o atravessam — decidir se esses recursos serão atalhos para um gozo repetitivo e paralisante, ou matéria para uma sublimação criativa que preserve a ética do desejo.

A arte, nesse contexto, mantém um papel privilegiado: é o modo pelo qual a pulsão pode ser transformada em obra, sem prometer a restituição do que falta. E essa transformação não é autoevidente: exige prática, crítica, linguagem e, sobretudo, uma postura ética que não traia o desejo por completo — que saiba, em palavras lacanianas, manter-se fiel à sua própria verdade.

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© 2025 por Arthur Alexander Abrahão

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