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Père-Version: A Versão Desviada da Função Paterna em Lacan

A noção de père-version é um conceito lacaniano que oferece uma maneira de compreender como a função paterna pode se apresentar de forma desviada na estrutura psíquica do sujeito.

Lacan propõe que a função paterna, expressa na metáfora do Nome-do-Pai, é essencial para estruturar o desejo e a subjetividade do sujeito. Quando essa função se desvia ou falha de alguma maneira, pode haver consequências no modo como o desejo se organiza, abrindo espaço para estruturas psíquicas como a perversão ou até a psicose.

A ideia de Père-Version sugere um “desvio pelo pai”, onde a perversão não seria apenas um traço moral ou comportamental, mas uma maneira específica de lidar com a Lei e o desejo a partir da relação com a figura paterna.

Este artigo visa esclarecer esse conceito, demonstrando suas bases teóricas, implicações clínicas e a importância de uma intervenção que respeite a lógica dos tempos e a necessidade de uma sustentação mínima para o sujeito.

1. Fundamentos Teóricos

1.1 O Nome-do-Pai e a Função Simbólica

Em Lacan, o Nome-do-Pai é o significante fundamental que organiza a lei, introduzindo a castração simbólica e permitindo a entrada do sujeito no mundo da linguagem. Ele representa a função paterna que impõe limites e estrutura o desejo, diferenciando o gozo maternal de uma forma que possibilite a subjetivação do indivíduo.

1.2 O Conceito de Père-Version

A père-version surge como uma versão desviada dessa função. Ela não nega a presença do Nome-do-Pai, mas indica que a função paterna se manifesta de forma ineficaz ou distorcida. Em vez de impor o corte necessário entre o sujeito e o gozo excessivo do Outro primordial (geralmente representado pela mãe), o pai se apresenta de maneira que não efetiva essa separação simbólica. Essa versão pode ser descrita como:

  • Derivada do Discurso Materno: A construção da função paterna começa antes mesmo da presença física do pai, quando o discurso materno o insere como um elemento que, contudo, não exerce sua função castradora de forma plena.

  • Desviante na Prática: Quando o pai, seja pela sua própria posição ou por estar reconfigurado pelo discurso materno, não consegue atuar como mediador simbólico, o sujeito permanece preso a uma estrutura onde a lei e o corte não se impõem de modo efetivo.

1.3 O que seria um "desvio"?

Lacan usa "père-version" para falar de uma função paterna que, em vez de operar a castração simbólica (ou seja, criar uma separação entre o desejo da criança e o desejo materno), mantém o sujeito preso ao gozo. Esse desvio pode ocorrer de diferentes formas:

  1. O pai cúmplice do gozo materno – Em vez de separar a criança da mãe, ele reforça ou encoraja essa relação fusional.

  2. O pai impotente ou ausente – Ele não cumpre sua função de corte, deixando o sujeito à mercê do desejo materno sem um limite claro.

  3. O pai excessivo, invasivo ou tirânico – Em vez de ser uma referência simbólica, ele impõe sua própria presença de forma autoritária ou mesmo abusiva.

Em todos esses casos, há um desvio na função paterna, pois o pai não opera sua função simbólica de forma equilibrada. Isso tem consequências para o sujeito, que pode se encontrar encurralado em um gozo sem limite, sem um referencial simbólico para lidar com seus desejos e angústias.

2. Implicações Clínicas

2.1 Formação de Sintomas e Estruturas Patológicas

A père-version pode se manifestar clinicamente por meio de sintomas que evidenciam a falta de um corte simbólico efetivo. Quando a função paterna não se instaura de forma adequada, o sujeito pode experimentar:

  • Fusão com o Outro Primordial: Uma dependência excessiva da figura materna, na qual o sujeito permanece sem um referencial simbólico autônomo.

  • Adoção de Estruturas Perversas: A falta do corte pode levar a configurações que chamamos de perversas, onde o sujeito se organiza em torno de um gozo obsceno, sem a mediação da lei.

  • Sintomatização Alternativa: Em alguns casos, a ausência de uma função paterna efetiva pode ser compensada por sintomas fóbicos ou obsessivos, que funcionam como substitutos para o desfecho do processo de castração simbólica.

2.2 Estratégias de Intervenção

Na prática clínica lacaniana, é fundamental reconhecer a presença de uma père-version para orientar as intervenções. Alguns pontos importantes incluem:

  • Intervenções Enigmáticas: O analista pode utilizar intervenções curtas e enigmáticas para provocar deslocamentos no discurso do paciente, incentivando-o a repensar sua relação com a figura paterna sem oferecer respostas diretas.

  • Respeito ao Tempo Psíquico: É crucial que o analista observe o tempo subjetivo do paciente, evitando desmontar precipitadamente a sustentação que o sujeito tem na dependência do Outro primordial. Uma ancoragem mínima – que pode ocorrer por meio de atividades concretas, da utilização provisória do sintoma ou da nomeação de um ponto de apoio – pode prevenir um colapso psíquico.

  • Reorientação do Discurso: O objetivo é permitir que o paciente comece a construir uma nova relação com o Nome-do-Pai, reestruturando o desejo e estabelecendo uma posição em que a lei seja internalizada de maneira mais eficaz.

3. Conclusão

A père-version é, portanto, uma expressão de como a função paterna pode se apresentar de forma desviada, não realizando seu papel castrador e, consequentemente, deixando o sujeito preso a relações de dependência com o Outro primordial. Essa configuração pode ser fonte de diversas dificuldades clínicas, mas também aponta para caminhos terapêuticos que visam reestabelecer o corte simbólico necessário à subjetivação.

A compreensão e a intervenção adequada nessa dinâmica exigem um olhar atento à articulação entre o simbólico e o real, onde a criação de uma ancoragem mínima possibilita ao sujeito reconstruir sua relação com o desejo e com a lei. Assim, o trabalho analítico busca não apenas interpretar, mas também criar condições para que o sujeito se desfaça de estruturas desviadas, abrindo espaço para uma nova configuração do sujeito no mundo.

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© 2025 por Arthur Alexander Abrahão

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