Ponto de ancoragem
Na teoria de Jacques Lacan, o "ponto de ancoragem" é uma tradução possível para o termo francês "point de capiton", que é frequentemente traduzido também como "ponto de acolchoamento" ou "ponto de costura". Esse conceito aparece principalmente no Seminário III (As Psicoses) e está relacionado ao modo como o significante estabiliza o fluxo do sentido.
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O que é o point de capiton?
Lacan utiliza essa metáfora para descrever como, dentro da cadeia significante (a sequência infinita de significantes que constituem a linguagem), certos significantes atuam como pontos de fixação ou estabilização do sentido. Sem esses pontos, o significado ficaria sempre flutuante, indefinido. O ponto de capiton é, portanto, o que amarra o significante ao significado, impedindo que o sentido deslize indefinidamente.
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Como funciona?
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Em qualquer discurso, os significantes se encadeiam de maneira contínua e, teoricamente, poderiam gerar múltiplos sentidos.
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O point de capiton surge quando um significante específico fixa um determinado sentido para uma cadeia significante.
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Esse ponto faz com que uma determinada articulação entre significante e significado se torne relativamente estável, ainda que essa estabilidade seja sempre provisória.
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Exemplo Lacaniano:
Lacan menciona que no discurso ideológico, certos termos ou slogans funcionam como points de capiton. Por exemplo: em discursos políticos, palavras como "liberdade", "justiça" ou "pátria" atuam como pontos de ancoragem, pois carregam múltiplos sentidos possíveis, mas, dentro de um contexto discursivo específico, essas palavras se tornam "fixadoras" de determinado sentido.
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Relação com o Sujeito:
No campo psicanalítico, o ponto de ancoragem tem a ver com a constituição do sujeito. Ao longo do desenvolvimento psíquico, certas palavras ou significantes fundamentais vão atuar como pontos de capiton que amarram o sujeito à linguagem e ao desejo do Outro. É o que estabiliza, por exemplo, certas identificações ou estruturas de gozo.
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No caso da psicose:
Lacan diz que, nas psicoses, pode faltar esse ponto de ancoragem simbólica, o que contribui para a "deriva do sentido", típica das manifestações psicóticas, como o delírio, onde o sujeito tenta construir pontos de ancoragem alternativos.
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Ponto de ancoragem e o fantasma
O fantasma (fantasme) em Lacan é uma estrutura que organiza o desejo do sujeito. Ele aparece na fórmula $⬪a, onde o sujeito dividido ($) se relaciona com o objeto causa do desejo (objeto a).
O ponto de ancoragem se articula com o fantasma da seguinte maneira:
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O fantasma funciona como um ponto de capiton do sujeito com o desejo do Outro. É uma cena ou uma montagem que estabiliza o sujeito no campo do desejo, fixando uma relação entre o sujeito e aquilo que ele busca no Outro.
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O fantasma amarra o desejo ao significante e dá ao sujeito uma certa consistência identitária, ou seja, ele "sabe" (mesmo que inconscientemente) onde se localizar em relação ao desejo do Outro. Nesse sentido, o fantasma é um ponto de costura entre o sujeito e o sentido de seu desejo.
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Exemplo clínico: Uma paciente neurótica pode se estruturar em torno do fantasma de "ser aquela que deve sempre salvar o outro". Isso funciona como ponto de ancoragem na sua narrativa pessoal e em suas escolhas afetivas, fixando sentidos e justificando sintomas, como a tendência a entrar em relações com sujeitos frágeis ou dependentes.
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Ponto de ancoragem e o gozo
O gozo (ou jouissance) é o que escapa da economia simbólica do prazer, sendo um excesso que transborda o princípio do prazer.
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Enquanto o ponto de capiton busca estabilizar o sentido dentro da cadeia simbólica, o gozo é o que tende a escapar ou a exceder essa estabilização.
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Porém, paradoxalmente, o ponto de ancoragem também pode ser aquele ponto que amarra o gozo ao significante, ou seja, que captura uma parcela do gozo no campo do sentido.
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Por exemplo:
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No caso da neurose obsessiva, certos rituais ou pensamentos podem funcionar como pontos de ancoragem para conter o gozo intrusivo. O obsessivo cria um ponto de capiton no excesso de pensamento, tentando capturar e domesticar um gozo que é vivido como ameaçador.
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Na histeria, o corpo sintomático (ex.: paralisias, dores inexplicáveis) pode ser o lugar onde o gozo se ancora e se fixa como sentido: “meu sofrimento corporal significa que sou desejada/que estou em falta para o Outro”.
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Na psicose (falta do ponto de capiton)
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Lacan aponta que, na psicose, o ponto de ancoragem entre significante e significado não se forma da mesma maneira, porque há uma foraclusão do Nome-do-Pai, o significante mestre que, na neurose, funciona como ponto de capiton estruturante.
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Isso gera um desencadeamento do sentido, onde o gozo retorna diretamente no Real e o sujeito fica exposto a um excesso de significantes que não se estabilizam simbolicamente. Por isso, o delírio aparece como uma tentativa do sujeito psicótico de produzir pontos de ancoragem alternativos.
Exemplo clínico: O caso Schreber é paradigmático. O paciente constrói um sistema delirante (o delírio das "almas" e da feminização) para tentar ancorar, organizar o gozo que invade o corpo e o campo do sentido.