O Imprevisto na Máquina Lógica: De Frege a Lacan
Escrito por: Arthur A. Abrahão
Este texto percorre um terreno complexo e fértil onde lógica e psicanálise se cruzam. A partir do rigor formal de Gottlob Frege, que estruturou a lógica matemática moderna, seguimos em direção às formulações de Jacques Lacan, onde o sujeito é entendido como um efeito da linguagem e não como um dado fixo. Entre funções e argumentos, cadeias significantes e Real, o texto explora o descompasso entre o cálculo lógico e o campo pulsante do desejo. Se Frege buscava capturar o valor de verdade de uma proposição, Lacan desmantela essa segurança ao mostrar que o sujeito habita uma máquina que não fecha — onde o gozo, o trauma e o furo simbólico interrompem qualquer previsibilidade. O que surge desse encontro não é apenas uma comparação entre sistemas, mas um convite a pensar como o pensamento formal se depara com os limites da linguagem e com o impossível de dizer.
O projeto de Frege: uma máquina de previsibilidade
Frege construiu um sistema lógico cujo objetivo era garantir a previsibilidade e a completude das proposições. No cerne dessa "máquina lógica" está a noção de função, representada formalmente como f(x). A função é uma operação que aguarda um argumento (x) para devolver um resultado lógico.
Na lógica fregeana, o argumento e a função assumem papéis análogos aos de sujeito e predicado na gramática tradicional. A função opera como um predicado que necessita de um argumento para formar uma proposição completa. Assim, o argumento equivale ao sujeito da frase, e a função equivale ao predicado que atribui uma propriedade ou relação ao sujeito. Essa formalização permite que Frege traduza a estrutura gramatical em uma linguagem lógica precisa, onde sujeito + predicado se tornam argumento + função, resultando sempre em um valor lógico: verdadeiro (V) ou falso (F).
Exemplos de Frege:
f(x) = "x é mortal"
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Se x = Sócrates, então f(x) = "Sócrates é mortal".
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Se x = Zeus, então f(x) = "Zeus é mortal".
f(x) = "x é maior que 5"
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Se x = 7, então f(x) = "7 é maior que 5" (Verdadeiro).
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Se x = 3, então f(x) = "3 é maior que 5" (Falso).
f(x) = "x é um número primo"
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Se x = 4, então f(x) = "4 é um número primo" (Falso).
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Se x = 5, então f(x) = "5 é um número primo" (Verdadeiro).
O cálculo lógico de Frege organiza o pensamento dentro de uma rede onde sentido e valor de verdade se fecham no interior da linguagem formal, garantindo desfechos lógicos previsíveis.
Lacan: o sujeito como argumento e o sintoma como função desmontada
Lacan opera uma subversão da máquina lógica fregeana. Para ele, o sujeito não é um ente autônomo fora da linguagem, mas um efeito da cadeia significante — nasce já dividido pelo simbólico. Assim, o sujeito ($) ocupa o papel de argumento, um elemento que circula na linguagem, mas que nunca estabiliza seu sentido ou alcança um valor de verdade definitivo.
O sintoma funciona como uma função desmontada. Diferente da função lógica fregeana, que sempre entrega um resultado lógico (V/F), o sintoma não retorna um valor de verdade, mas sim um efeito de gozo e uma repetição do desejo inconsciente.
Estrutura do sintoma em Lacan
O sintoma em Lacan se estrutura como uma função desmontada, composta por três elementos centrais:
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S1 (Significante-mestre): É a tentativa inconsciente do sujeito de nomear ou organizar o gozo. Por exemplo, "sou sempre rejeitado".
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Repetição de Gozo: O gozo que retorna através do sintoma, além da tentativa de nomeação feita pelo S1.
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Cadeia Aberta (S2 em movimento): O S1 se articula com outros significantes (S2), mas o Real impede o fechamento da cadeia, sustentando o sintoma na repetição
Formalmente, o sintoma pode ser expressado como:
f($) = S1 → gozo e repetição
O S1 é o significante-mestre. Trata-se do significante que tenta dar uma nomeação ou organizar a posição do sujeito no campo simbólico. O S1 opera como um ponto de ancoragem inconsciente, oferecendo uma primeira tentativa de sentido para o mal-estar ou para o sintoma do sujeito. Por exemplo, quando o sujeito afirma "sou sempre rejeitado" ou "sou incompetente", está utilizando um S1 para organizar sua experiência subjetiva. Contudo, o S1 nunca esgota o gozo envolvido no sintoma, pois este retorna repetidamente e de forma deslocada dentro da cadeia significante.
Exemplo clínico do sintoma como função desmontada:
Formulação clínica lacaniana:
f($) = "sou sempre rejeitado" → gozo e repetição
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Função desmontada: o sintoma "sou sempre rejeitado".
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Argumento: sujeito ($) em situações diversas (relacionamentos, amizades, trabalho).
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Resultado: sempre retorna à sensação de rejeição e ao gozo que sustenta essa repetição.
Exemplo prático:
O sujeito ($) chega à análise e relata: "Sou sempre rejeitado". Ele descreve episódios sucessivos onde, ao tentar se inserir em relações afetivas ou profissionais, acaba experimentando o mesmo desfecho de afastamento e exclusão. O sujeito funciona como o argumento que, ao ser inserido na função desmontada do sintoma, retorna sempre ao mesmo gozo e sofrimento.
Mesmo ao variar o contexto (parceiros diferentes, novos empregos, círculos sociais distintos), o sujeito reencontra o resultado do circuito: a rejeição. Isso demonstra que, na lógica lacaniana, a função não fecha como em Frege. Em vez de entregar um valor V/F, o sintoma opera como um campo de repetição inconsciente.
O papel do analista e o Real
O analista, segundo Lacan, não fecha a função-sintoma com um valor de verdade. Ele mantém o circuito aberto, impedindo o sujeito de fixar-se em um S1 estabilizador. Assim, o analista sustenta a abertura, forçando o sujeito a reencontrar o ponto de gozo e de falta que move sua estrutura inconsciente.
Exemplo 1:
Um paciente diz ao analista: "Sou sempre rejeitado e não sei por quê". O analista não responde com uma interpretação que encerraria a questão (como "é por causa da sua relação com o pai"). Ao contrário, ele devolve a fala ao sujeito, mantendo a função aberta e conduzindo-o a novas associações que atravessam o gozo e o sintoma.
Exemplo 2:
Outro paciente afirma: "Nunca termino o que começo". O analista evita concluir "isso é medo do sucesso" e permite que o sujeito elabore outros sentidos, sustentando o Real como aquilo que impede o fechamento lógico.
O Real: a falha estrutural
O Real aparece como o que rompe a cadeia significante, impede o fechamento e deixa o sujeito diante de um furo estrutural. É o que, na psicanálise, impede que o discurso se resolva em uma lógica formal, escapando à totalização simbólica.
Mesmo quando o sujeito tenta organizar sua experiência com um S1 (como “sou rejeitado” ou “sou fracassado”), o Real surge como o que escapa à rede de significantes e impede que o S1 estabilize o sentido. O sujeito pode articular S1 e S2, mas sempre há um ponto em que o gozo retorna sem ser plenamente simbolizado, mantendo aberta a estrutura do sintoma. O Real, assim, impede o colapso definitivo da função-sintoma e força o sujeito a girar em torno de novas formações de gozo.
O colapso simbólico: quando a palavra emerge
O "colapso simbólico" em Lacan refere-se ao momento em que o sujeito, que circulava em uma cadeia significante marcada pela superposição de sentidos, vê emergir uma palavra ou significante que interrompe temporariamente essa abertura. No entanto, ao contrário da lógica fregeana, esse colapso não entrega um valor fixo ou verdadeiro, mas apenas um desvio momentâneo dentro de um campo aberto. O ato de fala do sujeito, ou uma intervenção do analista, provoca esse colapso, onde algo se nomeia, mas sem estabilizar o sintoma ou a cadeia simbólica.
Exemplo clínico do colapso simbólico:
Formulação clínica lacaniana:
f($) = ato de fala → significante emergente (S1) + furo mantido
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Função desmontada: a cadeia aberta de significantes.
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Argumento: o sujeito ($) em impasse frente à repetição.
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Resultado: emergência de um S1 que dá sentido momentâneo, mas mantém o furo e o movimento da cadeia.
Exemplo prático:
O sujeito relata fracassos recorrentes no trabalho com a frase “nunca sou reconhecido”. Durante a análise, após uma intervenção do analista, emerge um enunciado como “nunca fui visto pelo meu pai”. Esse ato de fala faz colapsar simbolicamente a cadeia aberta — o sujeito encontra um S1 que organiza momentaneamente o discurso (“nunca fui visto pelo pai”), mas o furo permanece. O Real impede que a cadeia simbólica se feche e o sujeito retorna ao campo de deriva e de novas associações.
Esse ato de fala faz colapsar simbolicamente a cadeia aberta porque o sujeito, até então preso a uma multiplicidade de sentidos flutuantes (como em uma superposição quântica), ao dizer algo significativo (ex.: “nunca fui visto pelo meu pai”), produz um corte ou uma fixação temporária no campo simbólico. Esse significante emergente atua como um S1 que organiza momentaneamente o discurso, oferecendo um “respiro” na cadeia de associações. No entanto, o Real impede que esse colapso seja definitivo, pois o gozo excedente continua, mantendo o circuito aberto.
Conclusão:
Entre as engrenagens da máquina lógica e o rumor silencioso do inconsciente, o sujeito caminha sem garantias. Se Frege quis fundar um sistema onde cada passo leva a um destino certo, Lacan nos mostra que o caminhar é feito sobre um terreno movediço. O Real espreita cada dobra da fala, e o sujeito se surpreende ao encontrar o vazio justo no lugar onde esperava uma resposta. O cálculo falha, o discurso se desvia, e é ali, no hiato da lógica, que a palavra finalmente se pronuncia — para logo em seguida se perder novamente.