A FOTO, O ESPELHO e O (S1)
- Arthur Alexander

- 13 de jul.
- 5 min de leitura
No canto da estante, emoldurada por um fino filete dourado, repousa uma fotografia amarelada pelo tempo: um quadro congelado de um ano de vida. Ali, o bebê de bochechas redondas, trajando um macacão de linho branco, está sentado sobre um tapete persa de cores vibrantes, cercado por balões murchos que insultam a efemeridade da infância. O olhar, ainda que imaturo, encontra-se curioso, quase preguiçoso, enquanto pequenas mãozinhas abrem-se em cumprimento ao mundo, como se desejassem tocar algo além da lente. Ao fundo, avós e tios, engalanados em ternos e vestidos de festa, sorriem com a complacência de quem reconhece, naquele rosto, um futuro ainda por desenhar.
Em um canto discreto, alguém escreveu com tinta azul: “Esse era você.” Quatro palavras que se tornaram mapa e legenda de uma história cujo protagonista ainda não havia pisado plenamente no palco da memória. Não se trata apenas de uma imagem; é um ponto de ancoragem simbólica, um marco que legitima a passagem do não ser ao ser. O nome, sussurrado nesses traços de caligrafia infantil, ecoa como uma chama suave: é ali, naquela moldura, que o sujeito ganha contorno pela primeira vez, convocado pelo gesto de um outro que, ao apontar o dedo, diz: “Aí está quem você é.”
O pequeno retrato funciona como um limiar entre o antes e o depois da nossa entrada na linguagem, e é aí que a teoria lacaniana encontra seu ponto de apoio. Aquela fotografia, ao ser enquadrada e nomeada por outrem — “esse era você” — revela o momento em que o sujeito, ainda alheio a si mesmo, é inscrito na ordem simbólica através de um significante-mestre (o S₁). Esse significante, aparentemente simples, carrega em si a potência de ordenar uma infinidade de outros significantes (S₂): datas, nomes, genealogias, celebrações, tudo o que se segue ao gesto inaugural de indicar “ali está o bebê”.
Mas o que Lacan chama de estádio do espelho não se resume ao espelho literal; trata-se da forma como nos vemos refletidos no olhar do Outro, ainda que esse olhar se materialize numa imagem fotográfica. Na imagem, o bebê não reconhece a si mesmo — não há ainda o eu unificado —, mas a pose, o semblante, o enquadro fazem surgir o Ideal‑do‑Eu (I(a)), que se impõe como uma totalidade irredutível. É esse ideal imaginário que passaremos a perseguir, sem jamais alcançar plenamente, pois ele é simultaneamente o motor do desejo e a fonte de nossa alienação.
Em seguida, a dimensão simbólica se disfarça sob o gesto de nomear: “esse era você” não só indica o que se vê, mas confere autoridade ao discurso do Outro sobre a própria experiência; torna‑se a marca de pertencimento a uma narrativa que não inventamos, mas aceitamos como ponto de partida. É nessa inscrição que o sujeito se divide, pois recebe uma identificação que não corresponde a nenhuma vivência consciente — o real do nascimento, do choro e do primeiro passeio estão ali sequestrados pela imagem, guardados num registro que a memória não alcança.
Por fim, há o encontro com o real, no momento em que percebemos que essa cena inaugural jamais poderá ser simbolizada integralmente, pois escapa ao nosso acesso direto. O real, para Lacan, é aquilo que resiste ao símbolo e ao imaginário, e, nessa fotografia, ele assoma como o vazio deixado pela lembrança ausente. Esse furo, esse buraco de memória, é o ponto de liberação do desejo: é sempre em torno do impossível de recordar que estruturamos nossa vida psíquica.
Dessa forma, o pequeno quadrado amarelado na estante não é mero objeto de recordação, mas sim um ponto nodal da constituição subjetiva: nele se entrelaçam o imaginário do eu ideal, o simbólico da inscrição linguística e o real daquilo que não se deixa acessar. E é sobre essa interseção — S₁, espelho e furo — que se ergue a arquitetura do sujeito para Lacan, sempre em movimento, sempre desafiado pelo eco distante de um “esse era você” que remete a um passado inatingível e a um desejo sempre por vir.
Aquele que aponta para a fotografia e pronuncia “esse era você” não age como um mero narrador de lembranças, mas sim como porta‑voz do Outro simbólico: o locus anônimo em que a linguagem se organiza e em que se firmam as leis que regem a identificação. É no seu discurso que o sujeito encontra a validação de seu nome e de sua presença histórica, pois esse Outro detém a palavra autorizada a inscrever o bebê na rede de significantes que chamamos de família, de cultura, de memória compartilhada.
Ao designar “esse era você”, o Outro ocupa uma posição de donatário do significante‑mestre (S₁): é ele quem entrega ao sujeito a sua primeira credencial simbólica, aquele fragmento de discurso capaz de ordenar todos os outros – datas, nomes, filiações – que virão a compor a narrativa de uma vida. Nessa entrega, porém, reside também o poder de alienação: o sujeito passa a se reconhecer por meio do olhar e da voz alheia, vendo‑se refletido num espelho que não lhe pertencia até então.
Assim, o locutor não é apenas um familiar ou um fotógrafo; ele encarna o grande Outro, esta instância invisível que sustenta a linguagem e exibe seu decreto inaugural. É desse lugar que brota a certeza de “ali estar o sujeito”, ainda que o próprio sujeito jamais retenha na memória o instante exato daquela cena. É o Outro que nomeia, e, ao nomear, cria a fissura entre o real vivido e o real lembrado, mantendo ativo o desejo de preencher o vácuo de uma lembrança ausente.
O sujeito, ao ser interpelado por esse “esse era você”, vê‑se diante de um apelo que não admite mero silêncio: é como se o Outro, ao nomeá‑lo e enquadrá‑lo na fotografia, abrisse também uma dívida simbólica que exige ser paga. Essa dívida não se refere a um valor monetário, mas ao compromisso de corresponder ao mandato que o significante‑mestre impõe: dar sentido àquela inscrição provisória, preencher os vazios da história e legitimar, pela própria fala ou ação, a identidade que lhe foi designada.
Em termos lacanianos, o significante do Outro gera no sujeito um chamado à resposta — um “répondez” que ecoa a partir do lugar de fala do Outro. Não responder significaria restar à margem da cadeia simbólica, manter‑se no Éreal de uma cena inaugural inacessível, sem a qual a vida social e a própria subjetividade não se estruturam. Assim, o sujeito sente‑se compelido a narrar sua biografia, a reunir documentos, a compartilhar memórias — ainda que essas memórias dependam de relatos terceirizados — para construir um elo entre a imagem primordial e seu presente.
Esse movimento de resposta reveste‑se de duas dimensões complementares. Por um lado, situa‑se no registro do desejo: o sujeito busca confirmar que, de fato, “aquele bebê” corresponde a um eu que persiste até hoje, e, ao fazê‑lo, enriquece a cadeia de significantes com suas próprias marcas. Por outro lado, configura‑se como um gesto de reconhecimento perante o Outro: ao contar, nomear e rememorar, o sujeito retribui ao Outro a confiança simbólica de o ter instituído, sustenta o discurso que o engendra e, ao final, afirma uma posição efetiva dentro da rede social.
Em suma, a necessidade de resposta não é mero capricho psicológico, mas condição de existência enquanto sujeito: é através dela que se costura o laço entre o S₁ inaugural e o sujeito falante, entre a cena imóvel na moldura e a vida em marcha na narrativa pessoal.



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