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  • Foto do escritor: Arthur Alexander
    Arthur Alexander
  • 20 de abr.
  • 2 min de leitura

O analista, antes de qualquer técnica, é alguém que escuta. Mas essa escuta não nasce de um saber; nasce de uma queda.

Não é raro que, antes de escutar o outro, ele próprio tenha tido que se haver com o real de uma perda. Com o colapso de suas palavras, de seus ideais, de suas promessas simbólicas. Quando tudo que o sustentava — os S1 que o ancoravam — já não responde mais, resta o silêncio.

Mas um silêncio denso, habitado. É aí, nesse ponto de não saber, que a escuta analítica começa: não como um gesto caridoso, mas como uma ética. A ética de sustentar o desejo do outro, mesmo que precariamente, mesmo que sem garantia.

O analista, no fundo, é aquele que já não tem mais o que dizer — e, por isso, pode escutar.

Já não fala a partir de um lugar de mestre. Fala pouco, quando fala. E fala a partir do lugar do objeto, daquele que se deslocou o bastante para não querer nada do sujeito além de sua própria fala.

Escutar, então, não é oferecer consolo. É oferecer um espaço. Um espaço onde o sujeito possa construir sua própria costura em torno do furo — aquele furo estrutural que, por vezes, sangra.

No fim, o analista é alguém que sobreviveu ao próprio colapso, e que transformou esse resto em função: sustentar, com o corpo e com a linguagem, o que no outro insiste.

Mas escutar — escutar de verdade — não é neutro. Não é técnico. Não é um gesto asséptico de alguém que se abstém. É, antes, uma forma radical de presença: estar ali sem saber, sem querer saber por antecipação, sem defender-se do que vem do outro. Estar ali a despeito de tudo.

Por isso, o analista não é alguém que se salvou. É alguém que parou de tentar se salvar. E que, justamente por isso, pode oferecer ao outro um lugar onde o desamparo não precisa ser negado. Onde o sintoma não precisa ser eliminado. Onde o furo não precisa ser tapado.

O que resta então? Resta a sustentação do desejo — não como um ideal, mas como um resto. Um resto de vida, de pulsão, de linguagem. Um desejo que não se fecha em sentido, mas que insiste. Que repete. Que retorna.

Na clínica, o analista é menos quem sabe, e mais quem aguenta. Aguentar o silêncio. Aguentar a transferência. Aguentar a falta de garantias. E, sobretudo, aguentar não ocupar o lugar do Outro.

Talvez a psicanálise só seja possível porque, em algum momento, um sujeito caiu — e não se reergueu com novas crenças, mas permaneceu caído, escutando.

Não porque é forte. Mas porque já não tem mais nada a perder.


 
 
 

No final de seu ensino, Jacques Lacan reformula radicalmente o lugar da interpretação na clínica. Em vez de buscar sentidos ou construir narrativas coerentes, a interpretação analítica passa a visar o real do sujeito, aquilo que não se simboliza, que insiste fora do saber. É nesse contexto que Lacan formula o chamado quarteto da interpretação, composto por quatro operações: injúria, opacidade, jaculatória e silêncio.

Essas operações não articulam sentidos — elas desarticulam. Não constroem cadeias lógicas — interrompem-nas. São modos de intervenção que visam o S1 isolado, o significante puro, cortante, que toca diretamente o corpo e o gozo. Vejamos cada uma delas.

1. Injúria: a palavra que fere e marca

A injúria não é apenas ofensa. Ela é o S1 que marca o corpo com um traço de gozo. É a palavra que se inscreve não pelo seu sentido, mas pelo seu efeito traumático. Na análise, essa operação aparece quando uma intervenção do analista atinge algo do núcleo do sujeito, fazendo-o sentir-se tocado ou "atingido".

🗣 Exemplo clínico: Um paciente fala sobre uma cena da infância, e o analista pontua: "abandono". A palavra atua como flecha — não explica, não acolhe, apenas marca. O corpo responde.

2. Opacidade: o enigma que fura o saber

A opacidade se manifesta quando o analista diz algo que não se articula logicamente ao discurso do analisante. O efeito não é de compreensão, mas de estranheza, de desorientação. Esse tipo de interpretação cria um ponto de falha na cadeia significante — algo que não se entende, mas insiste.

🧩 Exemplo clínico: O paciente fala sobre o trabalho, e o analista comenta: “no escuro é mais seguro”. A frase não “faz sentido”, mas incomoda, fica na cabeça, como se dissesse algo que escapa ao eu.

3. Jaculatória: a pontuação incisiva

A jaculatória é o disparo breve, repentino, certeiro — uma intervenção que interrompe o discurso, como uma flecha. Não há explicação, apenas uma pontuação que atua como corte. O tempo da jaculatória é o kairos: o instante certo que não pode ser planejado.

Exemplo clínico: Após uma longa queixa, o analista intervém: “mas quem você quer enganar com isso?”. Uma frase curta que faz o sujeito cair em si, pois rompe o automatismo do blá-blá-blá.

4. Silêncio: quando o analista se abstém

O silêncio também é uma operação. Quando bem posicionado, ele desencadeia no sujeito o trabalho de elaboração. Diante de uma expectativa de resposta ou de sentido, o analista se cala, e o vazio resultante permite que o significante ressoe, isolado.

🤫 Exemplo clínico: O paciente pergunta: “o que você acha disso?”, e o analista não responde. Esse silêncio não é omissão — é uma presença enigmática, que devolve ao sujeito sua própria falta.

Conclusão: interpretar é cortar, não explicar

Essas quatro operações deslocam a interpretação analítica para fora da lógica do sentido. Interpretar, aqui, não é traduzir nem esclarecer — é intervir sobre o gozo, fazer surgir algo do real que estava encoberto pelo saber.

É por isso que Lacan, em seu ensino tardio, rompe com a ideia de que S1 e S2 formam uma cadeia estável. O que interessa agora é o S1 isolado, aquele que escapa à articulação, mas toca o sujeito onde mais dói — ou mais insiste.

 
 
 
  • Foto do escritor: Arthur Alexander
    Arthur Alexander
  • 9 de mar.
  • 4 min de leitura

IIntrodução


O desejo humano não é um fenômeno isolado ou puramente individual. Ele se estrutura a partir de um campo simbólico que o precede e o molda. Jacques Lacan, em sua releitura da psicanálise freudiana, formulou a célebre tese de que "o desejo é o desejo do Outro", indicando que o sujeito não deseja por conta própria, mas sempre dentro de um sistema de significações e expectativas que ultrapassam sua vontade consciente.

Contudo, há uma dimensão ainda mais inquietante nessa estrutura: o desejo do Outro pode instrumentalizar o sujeito para se realizar. O sujeito se descobre, não como o agente de seu próprio desejo, mas como um meio pelo qual o Outro manifesta sua própria pulsão.


1. O Outro como Instância Estrutural do Inconsciente

Lacan distingue o "outro" (com "o" minúsculo) como qualquer indivíduo concreto com quem interagimos e o "Outro" (com "O" maiúsculo) como uma instância simbólica, uma rede de significações que estrutura nossa relação com o mundo. O desejo não nasce do sujeito, mas daquilo que ele percebe ser desejado pelo Outro. Dessa forma, o desejo humano nunca é autêntico no sentido estrito, mas sempre mediado por um campo social e linguístico.

O inconsciente, para Lacan, é estruturado como uma linguagem e, portanto, pertence ao campo do Outro. Isso significa que o desejo inconsciente do sujeito já está inscrito em uma matriz simbólica que o precede. Desde a infância, o sujeito se vê capturado pelo desejo do Outro: primeiro pelos pais, depois pelas normas sociais e, finalmente, por todo um campo de expectativas invisíveis que determinam suas escolhas. Assim, desejar é sempre estar em dívida com algo que veio antes, com um olhar, uma palavra, um enigma que nos foi colocado antes mesmo de sabermos falar.


2. O Desejo Como Falta e Como Instrumento do Outro


Se o desejo do sujeito sempre remete ao desejo do Outro, isso significa que há uma falta constitutiva na experiência humana. Lacan articula essa falta com o conceito de "objeto a", que representa o objeto impossível, aquilo que escapa ao sujeito e que, paradoxalmente, sustenta sua busca incessante. O desejo nunca se satisfaz plenamente porque está ancorado nessa ausência fundamental.

Porém, o desejo do Outro não apenas estrutura a falta do sujeito; ele pode também instrumentalizá-lo para sua própria realização. O sujeito pode se ver em uma posição onde ele não apenas deseja algo, mas percebe que é desejado por algo maior do que ele.

O sujeito, assim, pode se ver reduzido a um meio, um canal pelo qual o desejo do Outro se manifesta e se inscreve no mundo.


3. O Gozo do Outro e a Captura do Sujeito

O desejo do Outro se desdobra em uma experiência ainda mais enigmática: o gozo do Outro. Se o desejo do sujeito é organizado em torno de uma falta, o gozo aparece como um excesso. Para Lacan, o gozo não é sinônimo de prazer, mas sim de algo que ultrapassa os limites do princípio do prazer, podendo se tornar doloroso, desestabilizador ou até inatingível.

O gozo do Outro pode ser experimentado como um campo de angústia, pois coloca o sujeito diante de um mistério: "O que o Outro quer de mim?" Esse enigma marca as relações humanas e é central para os jogos de sedução, poder e submissão. Ele também se manifesta na experiência religiosa e na política, onde indivíduos ou grupos se submetem a uma lógica de gozo que os excede.

Aqui, o sujeito pode se perceber não apenas como alguém que deseja, mas como alguém que é desejado por uma força maior, que o consome, o usa e o descarta. Quando um indivíduo sente que "não pode escapar" de uma situação desejante, quando é tragado para dentro de um ciclo onde seu desejo não lhe pertence, ele está no território do gozo do Outro.


4. O Tempo e a Repetição do Desejo

Outro aspecto fundamental do desejo do Outro é sua relação com o tempo. O desejo não é linear, mas cíclico e repetitivo. O sujeito tende a repetir certos padrões de desejo ao longo da vida, como se estivesse buscando incessantemente um objeto perdido. Essa repetição se conecta à noção freudiana de "compulsão à repetição", onde o desejo se estrutura mais pelo fracasso do que pelo sucesso.

A literatura e a arte frequentemente exploram essa estrutura do desejo como um loop infinito. O desejo sempre remete a algo que já foi desejado antes, como se estivesse preso a um circuito anterior . Isso significa que, muitas vezes, o sujeito não apenas deseja, mas é desejado a desejar.


Conclusão

O desejo do Outro não é apenas um aspecto periférico da subjetividade, mas um eixo central da experiência humana. Ele nos forma, nos move e, muitas vezes, nos conduz a territórios que não compreendemos completamente. Mas, mais do que isso, ele pode instrumentalizar o sujeito, fazendo-o agir, falar e desejar por uma força que não é propriamente sua.

O desejo, portanto, não é apenas algo que nos pertence, mas algo que nos habita e nos usa. Somos levados pelo desejo, mas também servimos ao desejo do Outro. A cartografia do desejo nos mostra que não há como escapar desse circuito. Podemos apenas tentar nomeá-lo, interpretá-lo e, talvez, habitá-lo com um pouco mais de consciência. Mas, no final, o desejo sempre permanecerá estrangeiro ao sujeito que o sente — um desejo que vem de fora e nos atravessa, nos tornando o que somos, às vezes sem que percebamos que nunca fomos os agentes desse jogo.

 
 
 
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© 2025 por Arthur Alexander Abrahão

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